Capítulo 1 – Ilusão
“Já não me recordo exatamente qual ponto inicial tornou minha vida uma rotina desagradável. Uma rotina perigosa, onde sequer tenho a certeza de terminar o dia vivo. Uma rotina onde sou exposto a incertezas e problemas humanos muitas vezes incompreensíveis.
Meu trabalho é, basicamente, atender aos serviços solicitados à Vayne Pennymore, conhecido no submundo e na imprensa como The Vermillion, pelos mais diversos clientes de sua agência exterminadora. Cada cliente possui um problema em particular, uns com problemas mais complexos do que outros, porém todos envolvendo o que se denomina hoje como Aberrações.”
O início de uma tarde quente, com um sol irritantemente forte, tornava a água um importante combatente. Os cidadãos comuns estavam todos fora de suas casas, aproveitando refrescantes banhos de mangueira, ou – para os com melhores condições – uma agradável piscina. Já os caçadores de aberrações não podiam aproveitar esse tipo de mordomia. Estavam trabalhando, como sempre, resolvendo os problemas de clientes que provavelmente também não conseguiam aproveitar o dia da devida maneira.
Blaze Mortuary e Razen Jacobs foram incumbidos de verificar qual o problema com um cliente inquieto que fizera uma ligação à The Vermillion, exigindo a presença dos melhores caçadores de aberrações em sua residência para exterminar um mal. E lá estava a destemida – e no momento impaciente com o clima – dupla.
Deparavam-se com uma enorme mansão. Os muros amarelados da residência uniam-se no centro por um grande portão de prata. Ao lado dele, uma campainha adornada por um belo metal, também prateada. O sol escaldante parecia não diminuir sua intensidade em nenhum momento, e contribuía para o desconforto dos rapazes, que desejavam acima de tudo poderem estar em casa relaxando em um banho gelado. Mesmo nessa condição desconfortável, Blaze não despiu nenhuma peça de seu corpo, mesmo tão cheio de roupas quentes. Sua camiseta branca, quase marrom no momento, devido ao suor, ainda estava por baixo de um sobretudo marrom abarrotado, e uma calça de couro igualmente marrom, além do chapéu velho e maltratado, que dava ao caçador a aparência de um cowboy selvagem. Razen, um pouco menos carregado de vestes pesadas, usava apenas uma camisa azul com a manga dobrada na altura do cotovelo, e uma calça de couro preta. Ajudando a esconder o rosto do sol estava o seu chapéu, que tinha um tom bege parecido com o do companheiro, meio torto para a direita. Blaze lançou um olhar intrigado para o casarão de cima a baixo, e perguntou:
- É aqui mesmo o local?
Razen entortou a boca para responder:
-Sim, o endereço está correto. Pelo visto é um cliente com uma condição financeira invejável. – Tocou a campainha. Ninguém apareceu ou respondeu pelo interfone.
-Francamente, não precisa ser tão formal. – Disse Blaze, retirando de uma alça presa às suas costas um rifle dourado. Com um tiro, ele destruiu o cadeado que envolvia as colunas do portão, e com um chute, tratou de abrir o portão de vez.
- Estranho uma mansão aparentemente respeitosa ser tão desprotegida. Tem algo errado aqui. - Mencionou Razen, entrando no jardim da mansão. – E esse jardim maltratado? - Apontou para um grande jardim espalhado pelas laterais, totalmente desidratado - Veja... As flores estão todas secas, mortas. Existe mesmo alguém morando aqui?
Os dois se depararam com uma porta preta, adornada por ouro nas bordas. Ao centro dela, mais um cadeado, maior do que o do portão de entrada da mansão. Blaze novamente atirou com seu rifle, sem demonstrar qualquer incômodo em destruir um objeto pertencente ao cliente. Ao entrar na mansão, a dupla teve uma surpresa. Diferentemente do cenário esperado em uma casa de luxo, encontraram uma destruição desordenada. Móveis contorcidos, despedaçados, um piano de ponta cabeça, quadros rasgados nas paredes, uma longa escada totalmente destruída, buracos no solo. No primeiro degrau da escada, o único intacto, estava sentado um homem de aparência velha, barba por fazer, com um terno preto empoeirado. O homem estava com as mãos apoiadas nos joelhos, olhando compenetradamente para o chão, sem se importar com os visitantes. Razen se aproximou dele, e, procurando entoar a voz em uma forma agradável e confortante, perguntou:
- Com licença, o senhor é Richard Ferguson?
O homem levantou o rosto, olhou para o rosto sardento de Razen e disse, com uma voz extremamente rouca:
-Sou.
-Recebemos um telefonema seu e viemos conferir qual é o problema. Ao que parece, existe um demônio nessa residência, não é? – Razen se agachou, e sussurrou – Sabe me dizer onde ele está?
O homem voltou a encarar o chão, riu bisonhamente e disse:
-Ahh... “Ele”. Está na cozinha, preparando um lanchinho. Servidos?
Razen fitou o homem, e disse:
-Um... Lanchinho?
O homem levantou a cabeça rapidamente, espremeu os olhos em uma expressão insana, e, com uma voz um pouco mais grossa e macabra, entoou em voz alta:
- O lanche da morte, meu rapaz EXPERIMENTE! - Se levantou rapidamente e agarrou o pescoço de Razen, que segurou os braços do homem sufocando. Blaze, que estava ao lado do companheiro, aplicou um chute nas pernas do homem, que cambaleou e caiu contorcido.
Um barulho vindo da cozinha atraiu a atenção da dupla. Subitamente, uma mesa gigantesca foi arremessada de dentro do cômodo, na direção de Blaze, que esticou sua bota de couro e estraçalhou a mesa com outro chute. Os destroços voaram por todos os lados. Da cozinha saiu mais uma pessoa, um homem exatamente igual ao que estava se contorcendo no chão ao lado de Razen. Ele deu alguns passos até parar ao ver Blaze sacar seu rifle e apontar em sua direção.
Abrindo um largo sorriso, disse:
- Sabe... As coisas nessa mansão têm sido muito monótonas... Não encontro diversão em nenhuma atividade. Achei que seria uma boa solicitar alguns caçadores pra tentar me pegar... E parece que encontrei gente de qualidade. Sejam bem vindos – Estendeu os braços, exaltando a destruição existente no lugar - À mansão de Exion, o Ilusionista.
O homem começou a sofrer uma mutação. Seu corpo foi se modificando completamente a cada palavra dita, até assumir uma forma extremamente bizarra e diferente da anterior. Agora já não parecia mais um ser humano, e sim um monstro. Possuía uma cabeça arredondada, repleta de finas agulhas. Seu corpo era fino, esquelético. No lugar de olhos, duas pequenas fendas com uma luz avermelhada ao centro.
Blaze fitou o adversário, e disse:
- Exion? Eu conheço você. É um dos demônios fugitivos do Espaço Especial. Aprontou bastante com essa habilidade de criar clones de seus reféns. O que fez com o Richard verdadeiro?
-Huhuhu... Não se preocupe meu rapaz. Ele está no andar de cima, brincando com as ilusões que criei. Aquela alma já é minha. Se eu fosse você, me preocuparia mais com o seu amigo...
Blaze olhou pra trás, e viu Razen ser atingido na barriga por uma adaga brilhante, por outro clone que surgiu repentinamente. O caçador caiu ajoelhado vomitando sangue, enquanto o clone posicionava sua adaga apontada para o pescoço do novo refém.
Quando Blaze virou-se para encarar Exion novamente, foi atingido no rosto pelo punho do demônio, que gargalhou ao desferir o golpe. O caçador quase foi ao chão, mas controlou o corpo e permaneceu em pé. Ergueu a cabeça e encarou o rosto pálido de Exion, que agora estava muito próximo do seu.
- Se for pra bater... BATE QUE NEM HOMEM! – vociferou, limpando o corte na boca com o polegar. O demônio não ficou nem um pouco contente com a provocação, e fechou os punhos preparando-se para surrar o caçador com crueldade. Mas a dupla de caçadores não deveria ter sido subestimada. Mesmo em uma situação complicada e desfavorável, a sincronia de movimentos que os dois eram capazes de realizar era fantástica. Com uma velocidade e habilidade sobre-humanas, Blaze, saltou por cima de Exion e Razen - que se espantaram com a ação -, mirou com o rifle na cabeça do clone de Richard Ferguson e atirou. Razen rapidamente apanhou a adaga da mão da cópia e atraiu a atenção de Exion jogando-a contra ele. O demônio agarrou a faca atirada e entortou-a furiosamente com apenas uma mão, mostrando a sua força descomunal. Porém essa foi sua última ação, pois Blaze já estava do seu lado, com o rifle apontado diretamente para a cabeça.
Exion balbuciou:
-N-não faça isso... P-por favor...
- O que dizer pra você? Quem sabe... Boa viagem para o inferno. – Blaze executou o inimigo - com um tiro barulhento que deslocou o corpo da criatura alguns metros adiante - e guardou o rifle de volta na alça das costas.
Razen se levantou, com a mão em cima do ferimento na barriga, cujo sangue escorria lentamente.
- Me desculpe Blaze... Eu não esperava que houvesse outros clones. Vamos nos apressar, esse ferimento está me causando uma grande perda de sangue...
- Não se preocupe. Serei breve.
Blaze saltou as escadas destruídas, se apoiando em alguns destroços pra ganhar impulso, e atingiu o segundo andar, enquanto Razen saiu da mansão e sentou perto da porta, ofegante. O sangue continuava a escorrer do corte. Ele chamou por Ferguson, mas não obteve resposta. Os diversos móveis destruídos obstruíam a passagem para determinados quartos. Blaze arrombou a porta mais próxima usando o corpo e encontrou o cliente caído, desmaiado. Quando se aproximou, ele percebeu que o homem estava com diversos hematomas pelo rosto e corpo. Sem mais demora, pegou o cliente no colo e percorreu o caminho que havia feito anteriormente. Com alguma dificuldade para pular do segundo andar para o primeiro, atingiu o chão e atravessou a mansão, saindo pela mesma porta que Razen.
- Mas que droga... Viemos até aqui acreditando na ligação de um cliente, sendo na verdade apenas um truque de um demônio idiota... Será que vamos receber alguma remuneração? – Resmungou Blaze, enquanto colocava o cliente no chão e enrolava um pedaço de pano no corpo de Razen.
- Não sei... Quem sabe se Richard recuperar a consciência... – Razen olhou uma última vez para o jardim de flores secas, e saiu com dificuldades pelo portão, indo em direção a um táxi estacionado à frente. Blaze pegou o cliente novamente no colo e acompanhou o amigo. Um homem idoso, com cabelo e bigode brancos como a neve, aguardava-os encostado na porta do veículo.
-Oh meu Deus, está ferido, Razen! – Exclamou o homem, abrindo rapidamente as portas dos passageiros para que eles entrassem.
-Não é nada... Só preciso tratar logo disso. Obrigado pela preocupação, Clay. – Respondeu Razen, entrando no carro. Blaze colocou Richard no banco, fechou a porta e contornou o táxi, entrando por outra porta. Clay foi o último a entrar, dando a partida no carro. Richard, que parecia estar recuperando a consciência, esticou a cabeça por cima do ombro do caçador para observar a mansão. O que ele viu ali talvez fosse apenas uma mera ilusão após os violentos momentos passados com um demônio em sua residência, afinal, não lhe pareceu nada natural avistar Exion encostado à porta, balançando levemente a mão em sinal de despedida, sibilando:
“Nós vamos brincar mais vezes”
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